endereços e errânsias
sobre entrevistas + uma entrevista com Marcelo Ribeiro
A divisibilidade da carta é o que se arrisca e desvia sem retorno garantido, a restância do que quer que seja: uma carta não chega sempre a seu destino e, posto que isso pertence à sua estrutura, pode-se dizer que ela nunca chega lá verdadeiramente, quando chega, seu poder-não-chegar a atormenta com uma deriva interna.
Derrida, em O carteiro da verdade
já tem um tempo que eu ando deixando crescer em mim a vontade de entrevistar pessoas queridas. claro que vivo e/ou vivi, com essas pessoas, conversas sobre uma infinidade de coisas, mas meu desejo aqui o é da entrevista como um gênero de conversa, de escrita e de relação. este é um projeto que vem de explorar essas relações passando por uma nova experiência de distanciamento, de ver como a gente se encaixa com a consciência de uma forma diferente de se expressar, junto a alguém do mundo íntimo, para o mundo público. considero que as pessoas que admiro sejam de muita importância no que elas têm a dizer e é querendo que o mundo as veja que eu pretendo vestir os olhos do mundo para falar com elas.
também já tem um tempo que eu ando pensando que preciso aprender a conversar. vejo como esse sentimento é comum para muitas pessoas, isso de achar que desaprendemos a conversa, que não se sabe exprimir o necessário para que o outro consiga interpretar exatamente o que tentamos expressar. eu mesma já ouvi aqui e alhures que não sei conversar direito, que sou muito atrapalhada e que preciso exercitar a retórica — seja lá o que isso for na forma de realização da fala.
o fato é que acredito muito em Derrida: a conversa nunca realmente se efetiva e, precisamente por isso, eu quero tomar como projeto ético e estético de vida a comunicação como experimento. assim, o meu aprender a conversar parte exatamente da consciência de que, por não chegar ao seu destino sem extravio, a comunicação é solo de explorações das suas rasuras. então, provando das derivas da conversa, da incompreensão, de ser uma entrevistadora que nem sempre consegue a resposta desejada (estive observando pessoas famosas por serem boas entrevistadoras e muitos elogios são dessa ordem, de se conseguir extrair o que se quer da pessoa entrevistada), é que pretendo aprender a desaprender a obsessão pela contundência.
é da fala uma produção muito específica de expressão das rasuras, de soar uma escrita que se faz enquanto ocorre. muito por isso, uma das minhas escolhas nestas entrevistas é a de sempre entrevistar na fala, na voz. a fala produz uma espécie de escrita processual que não se materializa e que as transcrições profissionais (e até mesmo as feitas por softwares e a tal da IA), ao dar a materialidade, optam por “limpar”, retirando da fala os rastros do seu aspecto intrínseco e tornando-a uma escrita pronta, já que seu uso serve frequentemente a um registro textual para fins corporativos, acadêmicos, jornalísticos etc. há muitas pessoas profissionais em transcrição que se utilizam de técnicas para contemplar o ritmo da fala, o tom, a personalidade de quem foi gravade, sem perder a correção escrita. afinal, fala e escrita são mídias diferentes, cada uma em sua gramática, então a fala que vira texto é um texto. no entanto — ou talvez por isso —, ouvir a fala de quem me responde me é essencial.
um dos questionamentos que Derrida faz ao Seminário sobre a Carta Roubada, de Lacan, é sobre a subordinação da escrita à fala, supostamente ali colocada por Lacan. a crítica ao falogocentrismo é uma disputa do valor de verdade entre as produções simbólicas da fala e da escrita. mais tarde, o próprio Lacan compreende a função simbólica de toda a linguagem dentro de suas contingências.
já que se pode dizer, com Lacan, que não existe a relação sexual, e com Derrida, que a diferença nunca se materializa, minha escolha aqui é experimentar as possibilidades da transcrição como registro da fala enquanto escrita em rasura, e como forma de interpretar e me relacionar com as respostas. claro que, aqui, não há uma busca por verdade ou qualquer pretensão que o valha, aqui eu parto da contingência para explorar possibilidades que não se realizam, pois a impossibilidade é um vasto campo estético. a différance me parece ser o que Drummond descreve como o reino das palavras, no qual se deve penetrar surdamente.
isso tudo foi só para dar um jeito quase-chique de dizer que a entrevista terá algumas marcações de silêncios, vícios de linguagem, auto-correções das falas e experimentos formais — o famoso “ficou assim porque eu quis mesmo, viu?”. não quis manter um espelho exato da fala, no rigor da ciência, mas assumi a posição autoritária de um poder do qual participam tanto o jornalista que descontextualiza declarações nas manchetes, como quem é neutro e imparcial, como um fantasma do texto. no meu caso, porém, uso desse poder para um gesto de abnegação: marcar a minha presença.
a primeira pessoa convidada a participar deste projeto-desejo foi Marcelo, meu marido. há anos partilhando muitas coisas da vida, estamos agora passando seis meses nos Estados Unidos, durante a segunda fase de seu período de pós-doutorado. aqui, estamos cada um no próprio caminho, e esses caminhos, que divergem e por vezes se encontram, são percorridos dentro da mesma mesa de cozinha, improvisada como escritório. e aí, foi no dia 25 de fevereiro que conseguimos dispor as cadeiras e colocar o ângulo perpendicular da mesa entre nós. preparei minhas perguntas e cliquei no ícone de gravar no celular para convidá-lo a uma conversa sobre cartas e errâncias.
[ # E eu acho que tá gravando, eu não sei o que é que ele está... tem esse nome aqui, mas... Da-da-da! Tá, foi. Não é? É... Tá, eu queria começar te perguntando uma coisa, que na verdade não é exatamente no tema, mas é porque quando eu te chamei pra esta coisa aqui, você riu e falou assim “eu sou muito besta". Por quê?
& Hum, eu sei lá o porquê, eu fiquei pensando "por que me entrevistar”, isso só…acho que tanto no sentido de por que me entrevistar como eu, o que que eu tenho a dizer e tal, mas também no sentido de, por que exatamente essa escolha de me entrevistar no sentido de, por que você estaria escolhendo essa, não sei, meio, não sei, é por aí, mas não é nenhuma… mas era mais uma brincadeira talvez, não tem nenhum problema.]
As cartas encenam
# E aí eu queria, na verdade, entrar no tema, tentando resgatar a memória daquele projeto que a gente tinha lá há muitos anos atrás, de cartas, e aí eu queria que você falasse sobre ele, por favor.
& Certo, era um projeto que se chamava A quem interessar possa. A gente teve um site, em um determinado momento, no domínio aquem.in. E ele era um projeto em que nós dois mandávamos diferentes tipos de carta, em termos de modalidade mesmo, de extensão, porque tem desde, sei lá, bilhete, que você pode mandar um bilhete para alguém, até uma carta mais extensa, com diversos tipos de
é, é,
de protocolos ali, de modos, de construir uma carta, enfim, e aí, a gente começou né? a experimentar com isso. E a ideia é era um pouco de mandar cartas para pessoas, no primeiro momento que a gente tinha, e que não necessariamente serem pessoas vivas, existentes atualmente, né? pode ser uma pessoa do passado distante, pode ser uma pessoa, enfim, de qualquer contexto.[ ] É… E que em algum momento também derivou para a ideia de poder mandar cartas para entidades que não são pessoas. Eu confesso que eu nem lembro se a gente chegou a realizar todas essas possibilidades, a rigor muito variadas que a gente tinha em mente, mas era um pouco por aí. E eram cartas então abertas, no sentido de que elas eram publicadas nesse site, não enviadas de fato pra pessoa, mas que estabeleciam essa lógica de diálogo[ ] , e que aí acho que acabaram virando uma carta não só para pessoa, mas também, sei lá, pode ser endereçada a um outro tipo de unidade, de destinatário: uma obra, um coletivo, ou seja, acho que era um pouco a ideia também de poder elaborar um diálogo reflexivo, crítico, eventualmente se aproximando de crítica de filme, talvez, mas por meio desse outro tipo de[ ]
endereçamento textual que é o que a carta viabiliza, né, em que você talvez se permita dizer coisas de uma outra forma — ou construa de outra maneira — o contato que ali está pressuposto, com uma proximidade, com uma certa relação mais íntima, talvez. Não sei se é íntima a palavra, mas de aproximação que nem sempre nos textos de crítica ou de reflexão, em sentido amplo, está da mesma forma. É…
E aí eu lembro que a gente experimentava e queria experimentar com essas ideias, mas acho que ao mesmo tempo se revelou um pouco difícil de manter no meio das idas e vindas, talvez pelo mesmo motivo que a gente acaba não mandando cartas para pessoas com as quais a gente tem contato. A gente acabou não mandando cartas para essas pessoas e obras e processos e coletivos que poderiam estar no nosso horizonte ali no AQUEM, que era como a gente chamava o projeto AQUEM… que aí virava um jogo de a quem interessar possa, mas aquém também no sentido de oposto do além, né?
# Eu gostava disso.
& Sim.
# Bom, e é isso, né, que você falou, as nossas cartas, elas não eram necessariamente lidas pelos destinatários. E aí, eu vou resgatar um pedacinho do que a gente escreveu no… na apresentação, que eu acho muito bonito, humm… que é:
“É das cartas, às vezes, se perder pelo caminho. E é da gente, entre filmes e livros, entre músicas e fotografias, às vezes a gente perde o chão, erra o passo, desanda os olhos.”
E aí, é… é isso assim. Acho que, na verdade, esta pergunta já está respondida na sua fala, mas eu queria entrar um pouco mais nisso, assim. Tipo, quando a gente pensa no formato rígido da carta, ela precisa de um endereço. Mas esse endereço não parece que — quando a gente explora né? as possibilidades da carta — esse endereço não parece que necessariamente serve para que seja entregue, ele serve para alguma outra coisa. E aí, como é que é o gozo da carta, assim? Como é que ela se completa, então?
& Bom, acho que depende da carta, né? Não é uma regra geral, não é uma coisa que vale para todas o tempo todo, uma mesma coisa, né? Mas é engraçado pensando agora também, acho que na minha explicação, do que eu lembrava do projeto, não…[ ] talvez eu tenha falado de uma forma um pouco inexata também porque eu falei que eram cartas abertas, e de fato eram em alguma medida porque elas eram publicadas no site, né? e a ideia era essa. Mas essa releitura desse trecho de apresentação, que era uma espécie de carta aberta inicial,né? acho que ela joga também com uma dimensão do projeto, que é um pouco diferente da ideia da carta aberta, embora acho que a diferença no projeto fosse um pouco uma cena construída ali, e não necessariamente real, que é essa ideia da carta que se perde, né?
# O extravio
& É, de uma carta que não chega ao seu destinatário, mas que chega, portanto, ao site e onde todo mundo vai poder ler, né? quem acessar. E tinha um pouco essa ideia de explorar
o, o…
sentido dessa possibilidade, que de uma certa maneira é uma coisa que acontece com muitas cartas que de fato chegaram aos seus destinatários, vamos dizer assim, né? no sentido em que se publicam cartas entre escritores ou entre personalidades, ou no sentido em que, sei lá, se você às vezes não publica tudo isso, mas se você pesquisa em um determinado arquivo, você encontra cartas que alguém mandou, desde bilhetes a cartas mais extensas para outras pessoas, memorandos também coisas profissionais que, num certo sentido, são comunicações próximas de cartas e que tão lá no arquivo que de repente é um outro destinatário; o destinatário, o pesquisador, a pesquisadora nesse caso, mas… enfim. E aí eu acho que tinha, né? nessa proposta do site, mais um interesse que não é tanto na carta aberta, porque acho que a carta aberta é um gênero por si só, né? que é um gênero no sentido em que se endereça uma carta, mas de saída já se sabe, já se imagina que ela é uma carta pra ser lida publicamente, e nesse caso, do projeto do Aquem, era mais uma carta, um conjunto de cartas, que a gente brincava com essa encenação, talvez, né? com essa fabulação de que eram cartas que de fato eram muito destinadas especificamente a pessoas — e em contextos específicos — mas que se extraviavam no site. Então era num certo sentido uma certa encenação disso, porque obviamente a gente sabia muito bem que não era uma carta que tinha sido endereçada e sim era uma carta para o site.[
]Mas é curioso, porque falando nesses termos, ao mesmo tempo dá pra pensar que, de alguma forma, qualquer pessoa que escreve uma carta ou mesmo um e-mail para alguém,[ ] sempre que se escreve alguma coisa, acho que é bastante isso, a gente tá colocando fora de si um rastro… que de alguma forma pressupõe a leitura de um outro, então toda carta em alguma medida é na verdade a cena inversa à que eu tou descrevendo do nosso projeto. A cena em que você fantasia que aquela carta não será lida, né? ou finge que você supõe uma não-legibilidade, uma não-disponibilidade daquela carta para outros leitores que não a quem você a endereçou. Mas ao mesmo tempo qualquer escrita tá sempre já de saída endereçada a esses outros que não os inicialmente pensados, né?[ ]
então, nesse sentido, toda carta é também uma encenação dessa destinação precisa. Ali onde a escrita de saída quebra isso e impõe uma espécie de extravio originário. É algo que o Derrida discute muito,
eu acho, enfim, que, é,
tem tudo a ver com uma certa exploração que eu acho que está no Derrida e está no modo como ele lê, sei lá, o Seminário da Carta Robada do Lacan e o conto do Edgar Allan Poe, “A carta roubada” e tal, que em todos esses textos de alguma forma esse elemento circula, né? essa ideia de que qualquer escrita — e nesse sentido a gente tá pensando no conceito muito geral de escrita, né?—, qualquer emissão de signos e sensível e sinais no sentido amplo, não só sinais semânticos ou semanticamente carregados, é…de alguma forma, qualquer emissão de rastros, qualquer produção de rastros, é já de alguma forma parte desse extravio.
O Derrida em algum momento fala numa palavra que eu acho que é interessante, que é a exapropriação, né?
# Uhum
& que como uma espécie de condição originária do rastro nos termos dele.
As cartas mentem
# Tá, a gente vai chegar ao Derrida também. É… você…Enfim, nesses seus mergulhos nos arquivos, você se encontrou com cartas, né? Como é que elas participam de arquivos e como é que elas entram na sua pesquisa? Se é que elas entram?
& Hum, Bom, eu acho que, até agora, já teve[ ] acho que talvez, enfim, nunca tinha pensado muito sobre isso. Elas entraram um pouco, eu acho, né?
Tem talvez uma coisa ou outra, assim, que apareceu a partir de alguma carta, tal. Elas estão presentes, apareceram várias e tudo, mas eu acho que ainda não, talvez, eu não tenha mergulhado tanto na exploração desse material,[ ] ainda. Principalmente das cartas que estão nos arquivos, né, que tão lá no arquivo de Edgard Leurenroth, da Unicamp, em torno do Teatro Oficina e do Filme 25, que é a parte que me interessava. Aí, dentro desse campo, desse contexto, tem algumas cartas que são das comunicações, é… do processo de fazer o filme, que eu já entrei um pouco em contato — eu ainda não explorei, como eu falei, né?—. Então, por exemplo, tem uma carta que, inclusive, o Zé Celso e o Celso Luccas publicam no livro Cinemação, então ela se torna essa carta pública já muito, muito cedo, né? O livro é publicado ali no início dos anos 80, em 1980, acho, P-precisamente… e a carta é uma carta que eles tinham, acho que três anos antes, quando tavam prestes a sair de Moçambique. Eles a endereçam a um dos integrantes da Frelimo, com quem eles estavam em contato no Instituto Nacional de Cinema, que é o Morais Mabyeka, e eles endereçam essa carta, justamente, para falar do entendimento deles sobre o que está acontecendo no Instituto Nacional de Cinema, que tem um certo conflito interno, enfim, que é justamente o estopim. O modo como esse conflito se desenrola tem a ver também com a decisão dos dois — não é o único fator, evidentemente, mas tem a ver com a decisão dos dois de sair de Moçambique e voltar para o Brasil — que acho que coincide um pouco com o momento inicial da Anistia, que aí já tem uma perspectiva de abertura, começando no horizonte, ainda de leve a aparecer, né? E…e aí eles voltam, e em 1980 publicam isso como um livro. Enfim, então essa é uma carta que encontrei, a versão manuscrita dela, a versão datilografada, e é isso que acaba aparecendo no livro Cinemação. É…mas, como eu disse, eu não explorei isso a fundo, então não verifiquei, por exemplo, se é uma transcrição exata, a que tá no livro, ou se houve algum tipo de edição, não sei.
E aí tem, o interessante é que tem vários outros tipos de cartas, tem muitas cartas em torno do 25 que têm a ver com… acho que com uma lógica meio de relatório sobre o filme sendo feito, principalmente quando eles vão montar o filme ou buscar o apoio da Frelimo para pagar para eles irem montar o filme na Europa; em Lisboa e depois em Londres. É…tem um processo longo aí que eu ainda quero entender um pouco melhor, tentar reconstituir como possível, e que talvez não dê pra reconstituir em todos os seus momentos e detalhes,[ ]
mas que passa, então, por essa comunicação, por meio do que a gente pode entender como cartas, né? porque são documentos mesmo, assinados pelos donos, que têm um aspecto um pouco mais formalizado, às vezes como relatórios, mas esses dois gêneros eventualmente não se separam tanto, né? mas, como eu disse, não explorei muito ainda isso, então, acho que talvez tenha algum tipo de diferenciação, também.
É… e aí, nos outros arquivos em que eu venho pesquisando, que são os do Ousmane Sembène e do Paulin Vieyra, que estão aqui em Bloomington, tem também umas cartas que já apareceram. É… e aí, é curioso porque tem algumas cartas de um tipo também que, salvo engano, não tão muito no arquivo do Oficina que eu consultei lá na Unicamp, que são cartas de um tipo mais pessoal mesmo, cartas às vezes, sei lá[ ]
de comunicações, cartas que o Ousmane Sembène recebeu, tem coisas mais formais, enfim, comunicações pedindo os direitos de um romance dele para transformar em filme, e umas coisas assim. Tem comunicações relativas a filmes em produção ou projetos, mas tem também esse tipo, é[ ]
que são, que se afastam um pouco mais do que eu estava falando do 25 também, porque é menos formal, é mais pessoal, que são cartas assim… da… acho que para amigos, esposa, coisas assim, né, para pessoas muito próximas e em que nem sempre estão se falando de projetos ou de arte ou de criação ou de filmes ou do que seja. Mas às vezes vai se falar da vida, da falta que a pessoa faz ou coisas desse tipo. E que de alguma forma também falam das obras, né, mas de outra maneira.
# Bom, é…talvez não necessariamente nessas cartas de ordem técnica, se eu puder colocar assim, talvez nessas mais pessoais,
não sei, mas enfim,
em todo esse emaranhado, é… existe um debate no meio da teoria literária e das epistolografias sobre a carta ser válida ou não como documento histórico, como fonte de informação e tal, e aí eu li, enfim, um pouco desse debate que mencionava esse "problema da confiabilidade" das cartas, e é, por exemplo, mencionado que o Proust mentia muito nas suas cartas, então isso foi sendo descoberto e tal. E aí, então, será que existe aí um germe do anarquívico?
& Acho que sim, tem, é bem interessante, é curioso, né? Eu nunca tinha também, acho que...
Não cheguei a mergulhar muito nesse tipo de debate… tenho a impressão, às vezes, que tem debates meio tributários de certas concepções de conhecimento que hoje parece até meio surreal, né, manter isso em debate.
# Sim
& É claro que é um documento histórico. A própria historiografia, desde muito tempo, entende que o processo da pesquisa com os documentos de um modo geral, não só com cartas, implica fazer a crítica do documento, implica entender em que condições ele surgiu e tentar, inclusive, cotejar com vários outros documentos, né, relacionados, digamos assim, aos mesmos processos, eventos, situações, etc. pra justamente...
# O próprio exemplo do Proust é uma evidência disso
É isso, para justamente se descobrir se aquele documento, em que medida aquele documento é confiável, no sentido mais trivial desse termo. Mas é isso, mesmo se for uma carta que mente, ela interessa historicamente também, ela é um documento, se não de outra coisa, de uma mentira específica que foi contada — claro, é preciso descobrir isso, se não se sabe, de saída —, mas isso é evidentemente que é interessantíssimo, né? Agora, a coisa que se torna mais complexa justamente é quando a gente começa a perceber a dificuldade, às vezes, de[ ] fundamentar essas avaliações, né? e é todo o desafio de qualquer pesquisa, no sentido amplo, nas humanidades, sobretudo, pesquisa com documentos históricos, com documentos de arquivo, etc., mas acho que em outros contextos também.
É…E
acho que é isso, é bom lembrar que mesmo numa, sei lá, numa entrevista com alguém, numa conversa, né, ou na observação participante lá da etnografia, qualquer um desses contextos é possível haver, né, equívocos, nem sempre mentiras especificamente, né, que alguém conta uma mentira para o outro, mas pode ser também…
essa fronteira do verdadeiro e do falso, daquilo que é, que tem veracidade no sentido de que alguém disse a verdade, e daquilo que é uma mentira no sentido de que alguém escondeu, né, a verdade ou contou uma outra coisa que não é verdade, essas fronteiras nem sempre são… não é nem que nem sempre seja possível defini-las, mas elas nem sempre, quando definidas, são suficientes para, para esse ideal, né, de uma fundamentação absoluta ali da verdade histórica,
sei lá, e, e
aí é por isso que é tão interessante, para mim tem sido muito interessante, inclusive, assumir esse, esse lugar de alguém que pesquisa em arquivos, que é algo que, de alguma forma, você faz na medida em que se pesquisa, às vezes, sobre filmes, porque a gente busca, né, elementos, mas que eu acho que antes eu tinha feito de uma maneira muito menos densa e aprofundada porque, sei lá, no máximo eu consultava arquivos no sentido de, sei lá, consultar a entrevista de um cineasta que foi publicada numa revista, né? Mas isso não é exatamente a pesquisa de arquivo neste sentido agora, do que eu tenho feito, em que há fundos específicos, coleções específicas que arquivistas organizaram ou estão organizando e que vêm de um, de um esforço, muitas vezes, das pessoas envolvidas — de arquivamento de seus próprios documentos e etc —, mas que vêm também de um esforço suplementar a esse. E aí que eu chego, né, no trabalho em cima desse, desse material pra entender o que está em jogo ali. E aí quando eu começo a fazer isso, tem sido muito interessante, como eu estava dizendo, mergulhar nesses processos, é justamente porque vai se mostrando sempre muito instigante esse, esse sentido de um contato com os arquivos que não é o de encontrar o fundamento definitivo de uma verdade, mas o de entender a complexidade do que está em movimento ali, né. E aí o que está em movimento nos arquivos, muitas vezes, vai envolver duas coisas que eu acho que estão relacionadas, né, de alguma forma, e que convergem a meu ver — embora seja necessário sempre tentar diferenciar isso aí, né, mas convergem — no conceito do que eu tenho tentado chamar de anarquívico já há algum tempo. Essas duas coisas são a mentira, ou o erro, ou né, essas várias possibilidades do não ser no arquivo, daquilo que não é verdade, daquilo que não é correto, factualmente, né, mas que encontra lugar muitas vezes no arquivo. E, por outro lado, a lacuna mesmo, a inexistência de um rastro. E essas coisas, como eu disse, estão relacionadas, porque muitas vezes, por trás de uma mentira, você não encontra, no próprio arquivo, a verdade definida; o por trás de um erro não é fácil encontrar porque, justamente, às vezes, essa suposta verdade definida não é fácil definir.
Mas, por outro lado, a lacuna é, muitas vezes, onde o trabalho de pesquisa implica imaginar. Imaginar é correr o risco de falsificar também. Então, você está sempre… uma coisa está ligada à outra, embora sejam dimensões distintas. A não-verdade e o vazio, vamos dizer assim, do arquivo. E na possibilidade dessas duas coisas, porque não é sempre delas que se trata ali, às vezes você encontra evidências, de fato. Mas a possibilidade dessas duas coisas está o tempo todo na pesquisa. E é justamente aí que eu tenho que tentar trabalhar com esse conceito de anarquívico, não apenas para falar de uma relação com o arquivo que confronta o arquivo —, que é também uma dimensão desse conceito, no outro aspecto —, mas pra falar de uma condição originária do arquivo, que tem a ver com aquela condição originária de toda escrita que a gente estava falando, de toda carta, etc., que é essa condição do extravio, de nem sempre tá na via certa, nem sempre tá encontrando, de uma maneira linear, o destinatário previsto e de nem sempre está, ao encontrar qualquer destinatário, previsto ou não, levando uma mensagem que também é ela linear, ou verdadeira, ou plena de elementos, mas ao contrário: está sempre levando fragmentos, restos, lacunas junto e, eventualmente, em alguns casos, as diversas variantes do erro, da mentira, da falsificação, etc. Isso é constitutivo do arquivo.
E é um debate interessante de se fazer num contexto como hoje, em que esses negacionismos diversos da história têm ganhado uma força muito grande, né? sempre existiram, sempre houve diversas formas de falsificação da história. A história oficial, como se diz, essa história comemorada ou consagrada, em determinadas instituições e, mesmo nos arquivos, muitas vezes, elas orientam essas categorizações e classificações do material, etc., elas sempre envolveram um risco, no mínimo, e muitas vezes a efetivação desse risco de falsificação, de mentira, etc. Mas hoje isso está ganhando uma amplitude muito… talvez, inédita. E essa amplitude do negacionismo, hoje, essa disseminação do negacionismo, tem a ver com essa condição anarquívica, eu diria, do arquivo. [ ] E aí uma das respostas possíveis pra essa difusão do negacionismo — e, em alguma medida, uma resposta necessária — é reconvocar um olhar, uma abertura pra uma atenção minuciosa, rigorosa, ao registro arquivístico e historiográfico existente, aos documentos, às fontes, etc. [ ] Então, é claro, isso é uma parte da resposta, ela é crucial. Mas a questão para mim, ao pensar a questão do anarquívico, é que isso nunca é suficiente.
Eu acho que nas pesquisas sobre um fenômeno correlato ao negacionismo, que é a desinformação, às vezes é chamado assim — talvez não o melhor conceito —, as fake news, etc. Muitas vezes, se fala que… existe uma parte da dinâmica desses fenômenos, de fake news, etc., que não tem a ver ou não é possível resolver simplesmente com a contraposição à notícia falsa, à desinformação da verdade de um documento ou, enfim, de uma apuração jornalística efetiva, etc. Isso não é suficiente, né? as pesquisas já evidenciam que a circulação dessas notícias falsas e das mentiras — e também no que eu estou interessado aqui no negacionismo —, a circulação disso tudo, esses discursos, que são todos negacionistas, nesse sentido amplo, ela tem a ver muito mais com uma espécie de ecossistema informacional, midiático, etc.,
que nem sempre… nem sempre, não,
que não está diretamente ligado a um lastro arquivístico ou arquívico, mas que ao contrário vem dessa condição anarquívica de todo arquivo. E aí o que eu fico pensando é que para responder aos negacionismos não é suficiente, embora seja uma etapa necessária, convocar de volta a nossa atenção pro que tá nos arquivos porque a gente precisa reconhecer também, e convocar, vamos dizer assim, a nossa atenção para essa condição anarquívica dos arquivos, que aponta para o fato de que mesmo a construção de uma verdade sobre a história, das possíveis relatos documentados sobre a história nas várias condições em que isso pode acontecer, com todas as nuances que isso tem, está relacionada a essa dimensão anarquívica. Então o desafio é um pouco o de reconhecer que isso é uma condição e confrontar o negacionismo sem a ingenuidade de supor que basta mostrar um documento pro negacionista que ele vai deixar de ser negacionista, não é o que acontece, né? Tem a ver com dimensões éticas, políticas e estéticas da relação com o arquivo que não são redutíveis a um valor epistemológico da verdade.
As cartas desejam
# Nossa! É…muito bom. Eu acho que foi assim. Eu tenho muitas coisas, mas eu tenho muita coisa que eu quero continuar falando sobre aqui.
& Sim.
# Bom, muitas vezes as mesmas pessoas que têm essa ideia de documento histórico, tão... como é que eu vou dizer? Eu não quero dizer datada, mas enfim...
& Positivista.
# Sim, positivista, obrigada. É, têm também uma ideia positivista do que é que é carta e do que é que é o suporte ou substrato da carta. E aí muitas vezes essas pessoas dizem que a carta morreu, que o meio digital — o e-mail principalmente, né, que eu quero dizer aqui — não é solo pra carta, porque as cartas de papel carregariam rasuras, né, vamos grifar a palavra rasuras, acidentes na escrita, se fazia rascunhos e muitas vezes esses rascunhos entram também como, né, parte do que se considera como documento histórico de uma certa verdade. Enfim, que a escrita a mão era uma mídia com intervenções e por isso isso é a definição assim da linguagem da carta. Mas a gente tá falando aqui de carta digital, a gente começou falando de carta digital porque foi o que a gente fazia, enfim, mas a gente tá transitando nesses meios. Você acha que a carta digital pode carregar outras formas de risco, de traços e qual é a différance?
& Poxa, é difícil, mas acho que sim, pode carregá-la. Só que muda muita coisa também, não é a mesma coisa, não dá pra tratar da mesma forma e tal. E acho que tem vários elementos aí em jogo. [ ] Um dos elementos é: a circulação dessas comunicações digitais, como e-mail, sobretudo, ela… se ela deixa rastros, e ela deixa certamente, esses rastros têm uma condição muito diferente de existência, midiática mesmo, falando no termo de mídia. E essa… não sei, pensando agora, essas diferenças têm a ver com o suporte, que tem uma outra lógica de durabilidade, que tem uma outra existência material, uma outra relação com a materialidade certamente tá em jogo aí; na diferença de carta para e-mail, especificamente, isso é muito evidente. Enfim, acho que sim, dá pra reconhecer elementos em comum, dá pra pensar que há adaptações possíveis, digamos assim, entre pensar o que ocorre numa carta, em que a informação… o que eu quero dizer é: a informação da carta, por exemplo, ela envolve eventualmente a palavra escrita errado porque a pessoa encaminhou, nem sempre rasurada e corrigida, às vezes um erro passa, enfim. No e-mail, acho que é sobretudo isso que pode estar em correspondência, porque você também pode escrever uma palavra errado e mandar, mas ao mesmo tempo o e-mail vai ter outras mediações, e quando se detecta um erro antes do envio, é possível não rasurar, mas simplesmente corrigir. Você muitas vezes vai estar sendo auxiliado por um corretor automático, ou algum detector de erros de digitação, etc., que essas várias equipamentos e plataformas que a gente usa oferecem, então aí tem uma outra relação com isso que é da ordem do erro, nesse sentido de rasura na escrita e de palavra errada, etc.
Então muda a configuração midiática, o suporte material, etc., tudo isso tem efeitos e torna, eu acho, também um certo desafio, é… — até porque eu não sei como é que isso é entendido, inclusive em termos de arquivos e etc. — o que fazer com essas coisas. É curioso, porque também dá para lembrar e pensar, inclusive, na questão, lembrando da possibilidade de que uma pessoa imprima um e-mail, que ela recebeu ou que ela mandou, inclusive. Então, aí o e-mail ganha de novo esse suporte impresso que a carta tem, embora seja de outra maneira, mas ele ganha. Em que condições alguém imprime um e-mail? acho que isso é uma pergunta importante, eu não sei se eu já cheguei a fazer isso com algum e-mail que eu recebi ou mandei, acho que não. Talvez imprimir e-mails quando era necessário, sei lá, alguma comprovação documental, coisa assim, muito burocrática, digamos, mas não do ponto de vista de ‘vou guardar esse e-mail que uma pessoa me mandou e que é tão importante para mim’, alguma coisa assim, isso não aconteceu, que eu me lembre. Talvez seja eu, claro, pode ser que outras pessoas tenham outras posturas, mas pensando a partir da minha experiência, tem... aí acho que um outro elemento, que é uma certa suposição de disponibilidade do e-mail no nosso uso cotidiano como informação digitalizada e digital por natureza, de origem, e que... e aí isso cria outra relação, né?
E aí há um dos possíveis erros que ocorre em relação a isso, nos e-mails, uma das possíveis riscos que o e-mail envolve é justamente o da perda dos dados digitais. Que está nas cartas também, no impresso, na medida em que as cartas, e o impresso, podem ser armazenadas de uma maneira que não dura tanto, pode ter uma tinta ou um papel que tem uma durabilidade menor e pode ter, sei lá, caído líquido e deteriorado… Tem uma dimensão do anarquívico nas cartas e na materialidade do impresso que tem a ver com essa deterioração do material, essa desintegração com o tempo, e que o trabalho arquivístico muitas vezes é o de impedir essa deterioração ou adiar a concecução, porque sempre virá, né, a gente pode supor de todo o material, numa deterioração meio que previsível de que todo o material; não existe material eterno, em suma. Existe uma durabilidade muito grande muitas vezes, né? e o impresso, por exemplo, tem uma durabilidade significativa que o digital não tem.
O contexto digital é um contexto em que uma coisa que acontece é a necessidade, se cria a necessidade de um outro tipo de gesto de preservação, que é diferente do que tá no impresso, por exemplo, que é um gesto, no digital, de preservação, que eu acho que na área se chama de preservação ativa, né? em que você precisa ficar criando cópias em novos suportes digitais, se você quer manter aquilo preservável de maneira mais durável. Porque se não se cria essas cópias, a deterioração do digital é muito mais rápida. Então um CD, um DVD, esse tipo de suporte de base digital muitas vezes perde as informações ali presentes muito rápido, em questão de alguns anos ou décadas no máximo, enquanto que o impresso dura muito mais e é uma preservação que depende muito mais de manter em condições adequadas àquele documento, àquele material, adequadas para sua durabilidade do que fazer cópias. No digital não, no digital não adianta, não tem por que apenas acondicionar — claro, acondicionar é importante para durar o máximo possível a mídia digital —, só isso não resolve. Em algum momento você vai ter que pensar em fazer uma cópia e ao mesmo tempo nesse caso fazer a cópia é fazer uma cópia muito fiel, o que não acontece no impresso. Fazer cópia, fotocópia, ou o que seja, é sempre fazer um outro documento e não o mesmo. Enfim, tou derivando muito em torno disso, mas acho que tem algo aí de uma outra diferença importante que o e-mail traz.
E aí é curioso, porque é…um exemplo que eu fico pensando… a gente tem livros de, sei lá, correspondência do fulano ou entre duas pessoas ou só de uma pessoa, com várias pessoas mandou para outra, coisa assim, mas um equivalente a isso com e-mail, salvo engano, não é uma coisa tão comum, pelo menos, né, fazer um livro dos e-mails trocados; a não ser que deliberadamente se faça isso. [ ] Porque é muito recente o e-mail, porque ele talvez ainda não seja um documento de arquivo tão definido nas regras de arquivamento que ele envolve, se é que ele vai ser arquivado de alguma forma, porque eventualmente… sei lá, não tem a senha do e-mail, a pessoa vai saber, tem mil circunstâncias que podem agravar essa dificuldade diante dos e-mails e da relação que a gente pode ter com eles como uma parte do arquivo a ser estudado.
# Certo… bem, vamos lá, deixa eu recalcular a rota aqui.
& Não, tá massa… é bom falar!
# Não, é, é, é, porque, enfim...
& É, bom falar sobre as questões que tão inquietando a gente porque nem sempre isso vai sendo elaborado, né? e esse é um jeito de elaborar in loco e no momento, no calor do momento da pergunta, da questão, da deriva, do pensamento.
# É, muito por isso que eu quis, também, fazer conversas. E eu quero fazer, enfim, uma forma de transcrever também que carregue os riscos que se corre na conversa, né, e fazer, enfim, a fala... não tentar uma coisa ingênua, ilusória, de reproduzir a fala, né, uma coisa assim, tipo, estritamente, reproduzir a fala, mas eu acho que a fala, ela leva consigo, né, muitas coisas. E aí, tá aí uma das tretas entre o Derrida e o Lacan, inclusive, no lance da carta, da escrita e da fala. E aí, um pouco por isso, também, que eu pergunto, qual é a différance, porque tem esses riscos, esses traços do suporte, né, em si. Mas eu acho que, enfim… tem a linguagem, né, e o que o dito e o não dito carregam na palavra escrita e, enfim, como esse dito e não dito podem performar nos diferentes suportes e tudo mais.
E aí, e tem também, assim, uma coisa que é uma narrativa batida, já, dos adventos das tecnologias e das Big Techs, principalmente, que é esse discurso do encurtamento de distâncias pelo meio digital principalmente nas redes sociais e tal. A gente trocava muitos e-mails como forma de cartas no início da nossa relação, quando a gente ainda não morava junto e tal. E aí,
quando a gente, será que, eu não sei, eu não tenho essa memória tão exata de que,
se foi a gente ter passado a morar junto, que isso se… que reduziu essa frequência de comunicação por e-mail e que a gente definia e define até hoje como cartas. No período em que você viajou no ano passado, a gente trocou mais cartas, né?
É…E e fico pensando, qual é a distância que faz uma carta? Se é necessário uma distância, de que ordem é essa distância? Se é uma distância de… enfim, espacial, geográfica, se é uma distância de outro ordem,[ ] não precisa ser uma coisa só também, né? Eu acho que essas coisas estão se permeando o tempo todo, mas é necessário algum distanciamento para que se faça uma carta?
& Talvez, né, porque tem sempre, pra escrever qualquer coisa, na verdade, né, tem uma...
Você, ao escrever...[ ] aprofunda uma determinada distância que é constitutiva de qualquer estar no mundo, né, de formas que podem variar. É... mas...[ ] eu acho que tem uma coisa relacionada a essa mudança na comunicação do impresso pro digital, também, que tem a ver com o tempo de uma outra forma, né, não o tempo que eu tava falando de preservação, de durabilidade, etc., mas o tempo da circulação mesmo, dessas mídias no seu uso efetivo pelas pessoas, né? É... Enfim, por mais que a gente possa entender, e entenda e tenha entendido e-mails como cartas, etc., a temporalidade do e-mail nunca vai ser igual, né? à da carta, assim como ela não é igual à da mensagem instantânea no celular, no WhatsApp, do que seja. Ela é uma temporalidade dilatada, a da carta, né? e a do e-mail é uma temporalidade mais abreviada e as mensagens, né, são justamente, normalmente, os outrs tipos de mensagens que eu mencionei, das plataformas de um modo geral hoje, de celulares, são as chamadas mensagens instantâneas, né? tem o próprio nome do instantâneo, né, etc.; é como um indício dessa diferença importante aí, né, de tempo. E eu acho que tem, então, esses dois fatores, né, a distância espacial, o não estar no mesmo lugar ao mesmo tempo, né, não estar junto na mesma viagem, etc., acho que foi um dos disparadores da nossa troca de cartas no ano passado, quando eu viajei, né, porque foram períodos um pouco mais extensos e em que, por outro lado, houve também uma decisão, né, não é só a distância que causou, porque já teve outras ocasiões em que a gente passou umas semanas, né, à distância, por viagem minha ou sua, em que não houve, né, houve comunicação por mensagem, mas não e-mail. E, nesse caso, houve e-mail porque se decidiu, né, você e eu decidimos sustentar. Muito embora, junto com esse fluxo, eventualmente houvesse mensagem instantânea, né, aí esses tempos se entrelaçavam,
é…e
o fato disso ser possível altera a nossa relação com a temporabilidade de todas essas coisas, né? O fato de ser possível logo depois que eu recebi um e-mail seu, ou que você recebeu um e-mail meu, a gente tá conversando por mensagem instantânea, altera a relação com essas coisas, né — sobretudo com a mensagem do e-mail, no caso desse exemplo — porque é isso, a gente tá na mensagem instantânea, eventualmente deixando pra responder ao que cabe ao e-mail num outro e-mail, né, separando, e eu acho que talvez se faça isso, né.
Mas enfim, pensando sobretudo isso, acho que tem, então, entre o e-mail, a carta e a mensagem instantânea, nesses exemplos que eu tava pensando, tem justamente essa lógica do conceito de différance, né, que é de existir uma diferença no sentido de distinção, né, formal, em termos de características, etc., mas existe também uma lógica temporal, né, nessa différance em que nunca se se presentifica plenamente essa diferença entre esses formatos, né, então eles eventualmente se aproximam até o ponto de se confundir, em alguma medida, pelo menos. Então, vai depender do uso, vai depender do contexto específico, das circunstâncias, das pessoas envolvidas, etc., como esse processo se realiza, mas, enfim, acho que é isso.
# É, uma boa relação precisa de uma manutenção de ditos e não ditos.
Errânsia
# Enfim… E aí eu vou encaminhar já, porque eu acho que está muito massa e tudo, e eu fico pensando nisso da errância das cartas e de como você... Não sei, assim, a gente falou sobre muitas coisas nas cartas que a gente trocou. [ ] Eu gostava muito de pensar e imaginar… e das coisas que você partilhava sobre você andando pelos lugares. Enfim, é isso, eu admiro a sua forma de errar o mundo. E aí, sobre errância, você mesmo já me falou várias vezes da importância das caminhadas para a sua vida em diversos momentos. É… E aí eu queria, enfim, finalizar ouvindo você falar sobre, sei lá, as suas caminhadas recentes, o que elas têm sido para você, os lugares em que você tem passado, como tem sido seus passos.
& Bom, eu acho que [ ] tem uma coisa da relação que a gente constrói e que talvez seja sugestivo do que relações amorosas podem e, frequentemente, envolvem, que é essa admiração pelas errâncias do outro, como você colocou. E aí acho que há uma vontade, muitas vezes, de que as errâncias do outro sejam partilhadas, em alguma medida, ou que a gente esteja junto, andando pelo mundo, ou que não estando junto, não sendo possível, sempre fazer as mesmas viagens, e ao mesmo tempo não sendo desejável um estar junto obsessivo, em que necessariamente é preciso fazer tudo junto, etc.
É isso, não as duas coisas não interessam ou não são possíveis ou não interessam, esse estar junto o tempo todo, mas tem um desejo de partilha no sentido de também esse contar sobre, essa partilha no sentido de mandar notícias e compartilhar imagens e registros e impressões etc. por meio de cartas ou mensagens ou vários outros tipos, né… contando sobre depois, quando volta da viagem etc, acho que tem várias modalidades disso, que é uma forma de partilhar essas errâncias também. E isso eu acho que é uma parte do que é construir uma relação amorosa em geral, passa por aí — a nossa certamente passa — esse desejo de partilha, e ao mesmo tempo um desejo de, eu acho também, que essas derivas e errâncias do outro possam ocorrer na singularidade do outro, na sua opacidade também, naquilo que ela tem de não partilhável, vamos dizer assim, né? Então acho que para mim essas duas coisas são indissociáveis mesmo, esse desejo de partilhar é também um desejo de partilhar muitas vezes na opacidade, na não transparência dessas errâncias para o outro, tanto porque isso não é possível, como porque isso não é desejável, eu acho que volta a essa lógica de novo. Mas tem uma dinâmica sutil variante dentro dessas configurações…
# Segura o seu pensamento, não esqueça o que você vai falar continuando. Só quero te interromper pra lembrar de uma coisa, das trocas de cartas que a gente teve. Principalmente quando você tava em Xangai, teve um dos e-mails em que você escreveu, assim meio frustrado, por não tá conseguindo… ou às vezes não tinha conexão com a internet, ou às vezes os nossos horários eram muito diferentes, então você não conseguia partilhar tudo que você queria partilhar comigo. E teve um desses e-mails em que você mostrou um pouco essa frustração. E aí eu, talvez resignada naquele momento, porque eu tava muito curiosa também, porque eu tava querendo ouvir você falar e tal, ler você falar.[ ] Eu acho que eu falei alguma coisa assim, no sentido de eu não lembro exatamente o que eu falei, mas eu falei alguma coisa assim…tipo, ‘deixa essa viagem ser sua’, alguma coisa assim. Enfim, quando você voltou essas coisas mudaram, mas eu acho que tem essa coisa do tempo também, que eu fiquei lembrando, né? Do tempo, das distâncias, enfim, de como as coisas interferem nas comunicações e dessa opacidade.
& Sim, aí tem uma parte. Eu acho que também essa coisa da viagem pra Xanghai, tem essa questão do fuso-horário, a qual você está se referindo aí, que é uma parte importante dessa dificuldade de partilha nesse contexto, ela é sobretudo uma questão dentro de uma lógica da partilha mais imediata da mensagem instantânea, né. Também foi um pouco isso, entender o tempo dessa diferença de fuso e o que ela reverbera na comunicação. E aí, claro, misturado com isso, tem esses entendimentos sobre o querer compartilhar, o querer estar junto, o querer comunicar o que tá acontecendo e o entendimento dessa parcela de opacidade, que é constitutiva, e que nem sempre também é só feita de reconhecimento da beleza que isso tem, mas é também às vezes feita de uma certa dificuldade de lidar com isso, faz parte também. Assim como a partilha às vezes envolve também, uma dificuldade, viajar junto também não é...
# Não é uma partilha plena...
& Não é plena só porque está junto, exatamente. Tem lá as opacidades envolvidas, tem as dificuldades de resolver para onde a gente vai, o que a gente vai fazer, e não-sei-o-quê sempre envolve esse processo, que tem, em última instância, a ver com o fato de que somos pessoas e portanto temos essa… somos constituídos pela opacidade também, inclusive em relação a nós mesmos; nem sempre sabemos que a gente está querendo e buscando.
Mas enfim, eu acho que isso tem a ver mesmo com um pouco de para onde eu estava indo, pensando nessa ideia de partilhar errâncias numa relação… e que, muitas vezes é partilhar errância dentro de uma relação amorosa, mas é também partilhar essas errâncias com as outras pessoas importantes da nossa vida de outras formas. Enfim, acho que eventualmente uma parte dessa partilha é também o que a gente posta numa rede social, é também o que a gente conversa com alguém sobre aquela viagem num outro momento, ou durante a viagem, né, comenta, enfim. Tem essas várias partilhas e tem um certo interesse, né, em elaborar esse tipo de partilha e ao mesmo tempo, como eu estava dizendo antes, esse não só reconhecimento, mas também um certo desejo de que o outro e nós mesmos tenhamos condições de errar pelo mundo livremente, vamos dizer assim, né, e da maneira como desejar. E aí eu acho que nessas… desde o último ano, eu fiz muitas viagens internacionais, por exemplo, como eu nunca tinha feito na vida, né, com uma frequência e variedade que eu não tinha feito, até então. E claro, não chega nem aos pés de, enfim, pessoas que devem viajar muito mais, não é uma questão de só quantidade, mas tem a ver com uma mudança mesmo de experiência disso.
E aí eu acho que ficou muito significativamente marcado nessa experiência, uma coisa que é o contato com o que é atravessar fronteiras entre países. Então, enfim, acho que é algo que… se viagens internacionais acontecem, né, na vida de alguém, a pessoa lida com isso, do jeito que ela tem que lidar para as viagens acontecerem, e isso vai variar dependendo dos países envolvidos e tal, mas é algo que me coloca em contato com talvez um desejo dessa partilha da errância, como uma partilha da possibilidade, né, dessa errância num mundo que deveria ser sem fronteiras, né. Acho que tem, tem, é, dizendo bem diretamente a isso, né, não deveria existir esse tipo de fronteira.
Existem já inúmeras fronteiras que são meio que impossíveis de não encontrar, né, porque é impossível apagá-las, que são fronteiras, sei lá, linguísticas, culturais, etc.; isso não é uma coisa que você decide, né, que não existe. Mas, junto com essas fronteiras, nos nossos tempos e já há muitíssimo tempo, a nossa organização política na forma do Estado Nacional implica a criação e a manutenção de fronteiras que não precisavam existir, né? E elas têm várias configurações, né, em alguns casos elas implicam o a exigência, por exemplo, de um visto no seu passaporte, a própria exigência de um passaporte tem a ver com uma tentativa de mediar essas fronteiras estatais, etc. E a demanda de visto é algo que aparece aí de maneira muito evidente. E às vezes vai muito além disso, tem a ver com a própria política da imigração no mundo contemporâneo, das viagens, enfim, o que é fazer uma viagem como turista, o que é fazer uma imagem como refugiado uma viagem como turista, uma viagem como refugiado…que, nessas várias condições variáveis, tem a ver com um modo como a gente tem que lidar e lida necessariamente ao viajar internacionalmente, sem dúvida, com essas fronteiras construídas e mantidas a partir dessas estruturas de poder que são os Estados, né? e que muitas vezes estão em contradição com as fronteiras do fluxo de capital, por exemplo; o capital viaja mais livremente, muitas vezes, do que as pessoas. Enfim, esse mundo bizarro mesmo, em que a gente está vivendo e tem a ver com isso, né. Então eu tenho pensado muito sobre, nessas minhas errâncias recentes que envolveram muitas viagens internacionais, felizmente, né, porque eu acho que está sendo muito bom fazer pesquisa e contatos — porque foram todas viagens de alguma forma acadêmicas, de pesquisa e de evento acadêmico, né. Nessas viagens tem sido muito importante, tem sido muito gratificante encontrar diferentes realidades, pessoas, instituições, etc., mas todo esse processo me coloca recorrentemente em contato com essa questão da fronteira, né, especialmente das fronteiras construídas que a gente deveria abolir, né, e que eu acho que é preciso abolir, né, um mundo sem fronteiras é o que a gente deveria, deve construir.
# Te amo
& Te amo
# Você é besta
& Cê que é
Com carinho,
Juliana
Escrevo muitas cartas extraviadas todos os dias
Eu lembro do aquem